Seja em empreitadas individuais ou em negócios
coletivos, o Brasil acumula histórias de pessoas que, a partir de um problema
particular, deram “o pulo do gato” e conquistaram um lugar no mercado
Para o destemido, uma pedra no
caminho pode se transformar de obstáculo à ferramenta de construção. E não
faltam, no País, pessoas que se encaixem nesse perfil. A brava gente brasileira
que aprendeu a se defender “dando um jeitinho” para sobreviver driblando
inflações no passado permanece firme em tempos de solo mais produtivo, e quem
aproveitou da necessidade para gerar uma oportunidade hoje colhe bons frutos.
Neste período, houve quem construísse impérios nascidos no quarto dos fundos de
casa, enquanto outros realizaram mais do que imaginavam ser possível. Fato é
que destes dois grupos, todos integram um time de (grandes e pequenos)
empreendedores de sucesso.
Histórias como as da Associação
dos Produtores de Doces de Pelotas, fundada em 2008 por 17 empresários do
setor, comprovam que, quando o “sapato aperta”, vence quem se esforça. A
necessidade de ter a marca protegida foi o ponto de partida para que produtores
tradicionalmente (e literalmente) inimigos se unissem em torno de uma causa
comum.
A presidente da entidade, Maria
Helena Lubke Jeske, festeja que, atualmente, a concorrência entre o grupo seja
coisa do passado. Mais do que receitas e a certificação de qualidade - almejada
em 2006 e alcançada no final de 2010 -, eles dividem um valor maior: a amizade.
O mérito rendeu o Prêmio Mulher de Negócios do Sebrae/RS, uma vez que a ala
feminina da associação é predominante (dos 17 membros, 15 representam o
gênero).
Um dos principais focos da
entidade é garantir a tradição dos doces ao território de Pelotas, através da
Indicação de Procedência. Para isso, construíram um regulamento técnico de
produção. Desde 2011, o grupo mantém a certificação nos produtos, o que garante
que outros comerciantes não utilizem indevidamente a marca. “Antes de nos
unirmos, outras pessoas, que viviam inclusive fora da cidade, vendiam como se
seus produtos fossem feitos em Pelotas. Isso estava afetando a nossa
credibilidade, inclusive com órgãos públicos”, conta Maria Helena, que é
proprietária da Imperatriz Doces Finos.
Com a associação, o acesso a
editais, bem como de informações e outras necessidades, foram facilitadas. “O
que sabemos fazer é doce, então o Sebrae nos ajudou na parte técnica e
disponibilizou advogados para construir o estatuto”, informa a dirigente. O
grupo trabalhou o passo a passo estabelecido pela consultoria e se estruturou
baseado em uma mesma mentalidade. “Antes, cada um defendia a sua receita, mas
nenhuma era a original. Reformulamos o produto em conjunto, resgatando a
receita original, conseguimos a identificação geográfica, e agora somente os
nossos doces, que apresentam semelhanças entre si, recebem o certificado.”
“Esses casos são muito inspiradores”, opina a gerente de Atendimento Individual
do Sebrae/RS, Viviane Ferran. “Por isso, o grupo mereceu o prêmio, que visa a
estimular pessoas, como as doceiras de Pelotas, a acreditar no seu sonho e ir
atrás”, completa.
Criatividade faz toda a diferença
Em solo árido, a criatividade é
importante e pode ser fundamental para a sobrevivência. O empresário Carlo Loro
Laitano, 46 anos, passou por esta prova de fogo há pouco mais de um ano, quando
uma estafa emocional e física, resultado de muitos compromissos assumidos, o
levou à falência. “Eu tinha uma padaria, mas precisei fechar. Logo depois,
perdi outro negócio, um bar em colégio na zona Sul”, lamenta. Antes de dar a
volta por cima, ele ainda tentou trabalhar como corretor de imóveis, mas não
obteve sucesso e, sem vender nada, a situação piorou. “Eu não tinha dinheiro
nem para o ônibus”, recorda.
Foi quando um programa de TV
fisgou a atenção do empresário: “eu vi um rapaz que vendia brownies para os
alunos e lembrei que conhecia um pessoal de bares de colégio, além de entender
de produção e vendas.” Laitano passou a estudar os sabores ideais, mas queria
também um produto com valor agregado. Para chegar ao resultado, ele testou
diversas receitas, não sem antes pesquisar o que ocorria neste mercado.
Aí surgiu o primeiro desafio: não
tendo onde fabricar o produto, e nem mesmo uma batedeira, decidiu fazer os
doces em casa, usando uma bacia e uma colher. A primeira leva foi tímida:
deixou meia dúzia de brownies em uma lancheria da Pucrs. “Naquela noite, me
ligaram pedindo para levar mais”, gaba-se Laitano. Aos poucos, as vendas dentro
da universidade evoluíram, mas chegou o verão e foi preciso buscar outros
clientes. “Bati de porta em porta em cafés e restaurantes. Eu ia meio na
incerteza, mas meti a cara. Para minha surpresa, as pessoas gostaram, e o
produto começou a girar.”
A marca Brownie do Cacá foi parar
nas páginas do Facebook, onde a divulgação ganhou corpo. Quando chegou ao
milésimo doce, ele finalmente comprou 30 formas, três batedeiras, balança
eletrônica e panelas. “Eu fazia tudo de ônibus, desde a divulgação, passando
pela compra dos ingredientes, até a entrega dos produtos.” De vez em quando, os
pais do empresário emprestavam o carro. “Depois de um ano acirrado, paguei
várias dívidas da padaria e comprei meu próprio veículo”, orgulha-se.
“O que me fez ter sucesso foi a
persistência, eu cheguei a ficar 18 horas em frente a um fogão de quatro
bocas”, destaca, lembrando que, depois desta etapa, ainda tinha que embalar e
etiquetar os produtos. Atualmente, ele trabalha 12 horas, com a ajuda de uma
funcionária. Em Porto Alegre, atende a quase todos os bairros, em 95 pontos de
vendas. Com um faturamento em torno de R$ 5 mil por mês, ele já planeja montar
uma fábrica em 2014.
Percepção ajuda a garantir o
sucesso do negócio
Se no passado a necessidade
ditava os rumos das pequenas empresas, hoje em dia o brasileiro tem empreendido
mais por oportunidade, observa a gerente da área de Pesquisa e Políticas
Públicas da Endeavor, Amisha Miller. “As pessoas estudam mais e percebem melhor
o mercado”, explica. “Isso mostra claramente que é importante se desenvolver.
Dizer que é possível obter sucesso, sem precisar estudar é um equívoco.” Amisha
coordenou uma pesquisa recente, realizada pela Endeavor e o Ibope, onde o
objetivo era mensurar as motivações de quem decide abrir o próprio negócio.
“Atualmente, a grande maioria dos brasileiros (58%) começa uma empresa mais por
oportunidade”, garante. E sentencia: “É mais fácil um negócio crescer quando ele
nasce de uma oportunidade.”
O estudo ainda mostrou que são as
mulheres que mais iniciam empresas por necessidade, devido a uma experiência
vivida, ou uma demanda não suprida pelo mercado. Casos como o da gaúcha Ruth
Pastori, que fundou uma escola para poder proporcionar aprendizado a adultos
especiais, em vista da necessidade que tinha em relação ao filho (leia mais na
página 10), se repetem em outros âmbitos. Há 19 anos, o sonho de ter um cabelo
naturalmente bonito, almejado pela afrodescendente Heloísa Helena de Assis, fez
com que ela passasse 10 anos pesquisando junto com o marido uma fórmula para
relaxar os cabelos supercrespos. Hoje em dia, ela tem uma rede especializada em
cabelos cacheados, que inclusive já anuncia plano de expansão.
Com sede no Rio de Janeiro, o
Instituto Beleza Natural mantém outros 13 salões em três estados brasileiros
(nove no Rio de Janeiro, dois no Espírito Santo e um na Bahia). Em março deste
ano, a rede inaugurou sua 13ª unidade, no Cachambi, e ainda este ano abrirá mais
três: duas no Interior do estado de origem, em Campos e Volta Redonda, e uma em
São Paulo. Contando com 1,7 mil colaboradores, a empresa apoia a política do
primeiro emprego, não requer experiência profissional para a maioria das vagas
e oferece treinamento aos recém-contratados. A rede tem um crescimento médio de
30% ao ano em faturamento. O público-alvo são mulheres e homens das classes B e
C, entre 18 e 45 anos, com cabelos crespos ou cacheados.
Também no rol das bem-sucedidas,
a diretora e proprietária da BR Goods, Beatriz Batista Alves Cricci, fundou a
empresa “quase que por acaso”. Em 2001, a economista era gerente de
contabilidade em uma companhia de navegação. Foi nesta época que ela teve a
ideia que a inseriu no mundo dos empreendedores. “Meu pai tinha uma casa na
praia e quando foi reformar os banheiros pediu que eu buscasse uma cortina ou
vidro que servisse de proteção para o box, mas achei tudo muito caro. Então eu
mesma fiz uma cortina decorada”, conta Beatriz. As amigas gostaram do modelo e
encomendaram versões. “Comecei vendendo para os conhecidos, depois ofereci em
lojas”, detalha. Um ponto que contou para o salto no mercado foi a atenção com
a higiene e salubridade do produto.
Brasil propicia oportunidades
Existe uma linha tênue entre empreender
por necessidade e oportunidade. “Toda vez que alguém precisa tomar uma
iniciativa para manter sua vida e necessidades básicas, irá empreender”, afirma
a diretora executiva do Tecnosinos, Suzana Kakuta, ex-superintendente do
Sebrae-RS. Segundo ela, uma oportunidade sempre estará vinculada à necessidade
de mercado, de algo em um setor específico. “Empreender por necessidade é
marcante no Brasil, porque vivemos em um ambiente que propicia oportunidades
dentro de uma flexibilidade de regulamentos, inclusive no que se refere à
informalidade.”
Na opinião de Suzana, os negócios
em que a oportunidade de mercado vem ajustada à necessidade do empreendedor são
os “mais originais”. Para dar certo, dois fatores contam muito, adverte: o
tamanho do mercado e a gestão do negócio. “Precisa tino do empreendedor”,
destaca a diretora, lembrando que são muitos os exemplos no País. Foi neste
contexto que surgiu, em Porto Alegre, a empresa Leite do Bebê. Criado pela
engenheira química Gracineli Daniela Taborda, 42 anos, o espaço é destinado à
locação de equipamentos para extração de leite materno.
Com o uso destes aparelhos, é
possível prolongar o período de aleitamento e proporcionar outros benefícios
para a mãe e o bebê, explica Gracineli. Em 2010 ela procurou um produto
semelhante no Estado e não encontrou. “Eu queria uma máquina de tirar leite
materno, porque nas manuais sai muito pouco, eu precisava de uma elétrica.” A
espera por um equipamento vindo de São Paulo durou dois dias, e foi aí que ela
percebeu o nicho de mercado. “Neste tempo, o seio pode empedrar, e as
consequências podem levar ao fim da amamentação”, ressalta.
Além de a máquina elétrica
retirar o leite com mais facilidade, o uso sai mais barato que comprar a
substância em pó, compara a empresária. “O aluguel custa de R$ 80,00 a R$
140,00 mensais”, informa. O aparelho é ideal para mulheres com bebês
pré-maturos, pois possibilita retirar o leite materno e alimentar a criança com
uma sonda, uma vez que nesta situação a amamentação direta não é recomendada,
porque o bebê não pode fazer esforço. “Hoje em dia, depois de verificar outras
necessidades de mercado, também locamos cadeirinhas para carro, berços
portáteis e carrinhos”, descreve Gracineli.
Outros produtos, como mamadeiras
especiais, relactadores, e roupinhas para prematuros fazem parte do portfólio
da empresa. “No começo foi mais difícil. Depois de um ano, o negócio começou a
dar retorno”, pontua a empresária, que largou a carreira de engenharia para se
dedicar ao negócio.
De olho nas necessidades de
nichos de mercado
A necessidade pode ser uma forma
de identificar uma oportunidade, apesar de ter deixado de ser o mote do
empreendedorismo no País. Antigamente, a busca por destaque social ou por
dinheiro impulsionava mais as ideias de negócios próprios do que a constatação
de um nicho de comércio, por exemplo, partindo de determinado produto que ainda
não tenha sido inserido no mercado. “Há casos de pessoas com dificuldade de
evoluir na escolaridade, que vivem em cidades pequenas, onde não há
oportunidades. Muitas viajam atrás de conhecimento, depois voltam para seu
local de origem e ajudam a desenvolver a região, fundando uma escola ou
projeto”, descreve a gerente de Atendimento Individual do Sebrae/RS, Viviane
Ferran.
Situações mais peculiares, como
as da pedagoga Ruth Pastori, de 82 anos, são verdadeiros exemplos de superação.
À frente da Associação Escola do Sol, uma das poucas instituições da Capital
que atende adultos especiais, ela implementou o projeto em 1970, porque não
encontrava um local adequado para matricular o filho, César, que tem paralisia
cerebral. “Quando ele completou 22 anos, muitas vezes precisei deixá-lo dentro
do carro, enquanto eu passava uma tarde inteira trabalhando”, recorda a
gestora, explicando que instituições do gênero são mais comuns para crianças.
Ruth fundou a associação na garagem da própria casa. Outras mães acreditaram no
trabalho e levaram os filhos. Com o tempo, o espaço tornou-se pequeno, e a sede
da instituição mudou para o bairro Partenon, onde hoje funciona em um prédio de
dois pisos.
Além de salas de aula e materiais
utilizados nas atividades terapêuticas, há espaço para aulas de música,
computação, enfermaria e salão para convivência. As peças do piso superior
estão prontas, mas ainda não foram usadas porque faltam mobílias e instrumentos.
A mais recente conquista da escola foi a compra de um elevador para os
cadeirantes. Chás e brechós abertos à comunidade são promovidos para angariar
fundos. Além da verba esporádica proveniente dos eventos, a escola conta
somente com a mensalidade paga pelos nove alunos assessorados. “Nós precisamos
deles e eles precisam de nós, porque não há muitos institutos voltados para
esse público. Eles não podem ficar em casa em frente à televisão, porque isso
não é saudável. É preciso mostrar a eles o mundo que os cerca”, afirma a
diretora da associação, que tem apoio da ONG Parceiros Voluntários, que
disponibiliza alguns professores. Outras três pessoas, além de Ruth, também
ministram aulas.
Os planos para a instituição vão
além. A ideia é criar uma casa-lar para acolher os estudantes. Ela tem a
preocupação de encontrar um bom lugar para o filho viver, para quando já não
tiver mais forças de cuidá-lo. “Esta apreensão que sofro aflige todos os pais
que têm filhos especiais, por isso, quero construir esses quartos e edificar um
lugar onde essas pessoas sejam bem-acolhidas. A construção da casa-lar é meu
maior sonho.” Para o desejo se concretizar, a escola precisa de doação de
materiais de construção, bem como móveis para mobiliar os quartos, os banheiros,
a sala e a cozinha do futuro lar. Outra busca é por voluntários, inclusive um
que substitua a atual diretora. “Preciso encontrar alguém para dar continuidade
a este trabalho, que não pode parar”, comenta Ruth.
A diretora diz que depende de
muita ajuda, porque os pais dos alunos também precisam de atenção de psicólogos
e assistentes sociais. No momento, nenhum desses profissionais faz parte do
quadro de voluntários. “Eles são importantes, porque orientam os pais a
entender melhor seus filhos, os medos que eles têm, e a auxiliarem no processo
de superação desses problemas”, afirma Ruth.